Por Procurement Club | 29/01/2023 ás 07h29 | Atualizado 04/04/2024 ás 05h26

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De lutas contra o racismo à homofobia: histórias de quem encara preconceitos e desafia tabus até no carnaval

De lutas contra o racismo à homofobia: histórias de quem encara preconceitos e desafia tabus até no carnaval
É como se houvesse um quadrado para cada um, com espaços restritos, por exemplo, a determinado gênero, diz Shirley Batista Felismino, a Xica, há três décadas operária dos barracões. Atualmente no Salgueiro, ela é empreiteira de carros alegóricos, cargo praticamente monopolizado por homens. Ao longo de sua trajetória, assédios morais e sexuais a oprimiram. Os que tentaram humilhá-la por ser mulher não faltaram. Xica lembra que, no alojamento de uma das agremiações pelas quais passou, enquanto os colegas de lida dormiam em beliches, ela era a única que passava as noites no chão. — Mulher na Cidade do Samba é massacrada a todo tempo. É mais comum que estejamos na costura, no adereço... Mas, em outras funções, somos raras. Por duvidarem da nossa capacidade, é muito mais difícil conseguirmos trabalho — diz Xica Abaixar a cabeça nunca foi opção para ela, dona de um currículo com alegorias como o Omulu que trouxe Martinho da Vila, na comissão de frente da Vila Isabel, no ano passado. À discriminação, Xica responde não só com resultados, mas também abrindo portas a grupos muitas vezes renegados. Em sua equipe este ano, responsável por toda a decoração e o acabamento de dois carros do Salgueiro, só havia mulheres cis, transexuais e gays. — Trans, foram cinco, todas egressas do sistema prisional, que conheci através de um projeto da Maré. Elas estrearam no barracão, e o que aprendi com elas foi respeito. Conheça histórias de quem enfrenta preconceitos e desafia tabus até no carnaval. Das muitas ameaças que deixaram o porta-bandeira Anderson Morango a um triz de abandonar sua dança, algumas são vívidas na memória. "Esse viado tem que morrer", entreouviu num evento na Sapucaí. "Esse viado vai acabar com a nossa arte", escutou de uma porta-bandeira de quem era fã. Se nos primórdios, o pavilhão das escolas de samba era conduzido por homens, a tradição de décadas o entregou às mulheres. Antes, Anderson foi mestre-sala, mas sempre mirou os rodopios. E quando foi instigado a assumir esse bailado, primeiro enfrentou o próprio medo da homofobia que tinha certeza que o afligiria. Recebeu o apoio de lendas como Selminha Sorriso e Vilma Nascimento. Mas, depois, os golpes foram mais duros do que podia imaginar. — Às vezes me cobram que eu faça cirurgia plástica no rosto. Sou negro, gay e pobre. Não posso estar ali? Se fosse um artista, achariam lindo — diz Morango, que já desfilou na Sossego e, este ano, estreia como segundo porta-bandeira no Arranco, pela Série Ouro. Ele diz que, embora a população LGBTQIAP+ seja vital ao carnaval, preconceitos e segregações são explícitos. Sugeriram ao muso e ativista Gato de Salto, da Lins Imperial, que, se "colocasse um peito", talvez as coisas mudassem. Insinuaram que seu lugar era a ala da diversidade. O objetivo sempre foi outro: ser passista, o que lhe tem sido negado. — A vontade é sambar da forma que quero, com trejeitos femininos e salto alto. Mas argumentam a representação de malandros e cabrochas. Sou a favor da proteção de tradições. Porém, não seria eu, não-binário, que tiraria espaço delas. Numa ala com 80 pessoas, deviam se abrir ao passista diversidade — reivindica. A escola na qual Gato de Salto desfilará, a Lins, é a única da Sapucaí com um presidente assumidamente gay. E não é porque é dirigente que Flavio Mello não enfrenta impropérios. Há quem julgue que o gay pode se envolver na parte artística da festa, não na gestão. — São chacotas do tipo "administrar escola não é coisa de viado". Partem para o desrespeito, sem dar crédito à capacidade de executar — conta ele. Para a comunidade trans é tudo ainda mais restrito. Átalo Willan, da equipe de projetistas do Salgueiro e que sonha se tornar carnavalesco, não se orgulha de ser um dos primeiros homens trans da Cidade do Samba. Na Grande Rio, a chefe de ateliê trans Reyla Ravache diz que o preconceito, às vezes, vem até de gays. — É como se pensassem "aquela que é prostituta". E isso não é só no carnaval. É na vida. Saio de casa com o sol nascendo e sou abordada no ponto de ônibus, perguntam quanto é o programa —diz Reyla sobre um estigma que limita pessoas trans a um único trabalho. — Isso causa muita tristeza, mágoa. Cumpro minhas tarefas sob pressão. Tenho que fazer muito melhor para que acreditem em mim — relata Reyla, que chegou a passar quatro anos afastada da festa, com depressão, após se decepcionar com uma escola de samba onde foi carnavalesca. Um quadro cruel que a empresária e rainha de bateria Thalita Zampirolli, que estreia na Unidos de Padre Miguel, pretende ajudar a desconstruir: — Trans, sei da minha representatividade como rainha, cargo no qual pretendo dar visibilidade a muitas mulheres, trans ou cis. Numa manifestação intrinsecamente preta desde suas origens, a verdade nua e crua é que uma das profissões que, ao longo dos anos, mais ganharam estrelato na folia — a do carnavalesco — é historicamente dominada por homens brancos. Houve desfiles em que João Vitor Araújo, que hoje está no Paraíso do Tuiuti, ao lado de Rosa Magalhães, foi o único negro entre os artistas à frente das escolas. Em 2023, o Grupo Especial carioca terá três carnavalescos pretos. Além de João Vitor, a Beija-Flor tem em sua equipe André Rodrigues, e a Mangueira promove a estreia entre as grandes de Guilherme Esteves, junto de Annik Salmon. Eles ainda são minoria, e nenhum assina o carnaval sozinho. Mas João Vitor vê o novo momento como um avanço. — O carnaval é plural e preto demais para ter só três artistas negros no front no Grupo Especial. Recentemente, porém, participei de uma palestra em que, juntando os carnavalescos da Série Ouro, éramos sete ou oito artistas. Aquilo me deu uma tranquilidade. Até brinquei, dizendo que era para eles falarem, porque eu estava cansado de estar sozinho — relembra João Vitor. O percurso até ali, relata, sempre foi de provações. — Levei 14 anos para virar carnavalesco, um processo demorado — conta. — Nos barracões, a maior parte da bancada (os artistas na base da confecção de carros e fantasias) é preta, mas o carnavalesco e seu assistente são brancos — continua. O novo desafio, diz João Vitor, é permanecer no cenário: — E, se não abrem as portas, a gente as derruba com o nosso talento. "Não é só disposição, tem que ter coragem". A constatação de Elis de Sá, de 51 anos, é de quem só realizou o desejo de desfilar em 2019, após superar um coma. Desde então, ela é uma das beldades que desafiam o etarismo no Sambódromo. Com seus 50, 60, 70 anos, todas sustentam o ritmo como musas e destaques, sob as lentes que costumavam estar focadas nas mais "novinhas". — Sejam protagonistas de suas vidas — diz Elis, destaque da Unidos de Padre Miguel e musa da Imperadores Rubro-Negros, num recado a mulheres de todas as idades. E não importa se o samba vem de berço ou não. A gaúcha Paula Bergamin, musa da Vila Isabel, aprendeu o gingado aos 52. Era para ser apenas um desfile. Não planejou, deixou-se levar e, aos 61, é uma referência da bandeira do não-etarismo na Sapucaí. — Não precisa perfeição. Tem de ser verdadeira. Ter alegria, energia e amor pelo samba — diz Paula, hoje aclamada, mas que já encarou muitos olhares de reprovação. Questionamentos como o percebido por Aldione Sena, de 67 anos, num ensaio. "Ela é uma coroa", leu nos lábios de uma pessoa que a apontava. Em sua cabeça, a resposta foi um categórico "e daí?" —Vão ter que me aturar mais um bocadinho. Quem sabe não recebo um convite para ser rainha de bateria? — diz a madrinha da ala de passistas da Estácio, com autoridade de passista Estandarte de Ouro, que carrega o samba nas veias desde menina. Tania Bisteka foi rainha de bateria e chefe de almoxarifado da Mangueira. Neste carnaval, ainda na verde e rosa, tornou-se a primeira diretora de barracão mulher da história da Cidade do Samba. A função é uma das mais exigidas do carnaval: da carpintaria à ferragem, são de dez a 15 setores sob sua gestão, cerca de 150 pessoas diariamente, além da logística para levar a escola à Sapucaí. Ao inaugurar o poder feminino nesse comando, ela almeja ser pioneira de uma nova era. — Quero muito que outras mulheres ocupem este espaço. Não podemos ser o que dizem que devemos ser. Vamos aonde quisermos — diz Bisteka, que implantou a marca da organização no barracão. — Sou rigorosa. E não perco minha feminilidade. No dia a dia, uso botina para subir em carro alegórico. Mas saio daqui, eu me maquio e me produzo toda. Sou uma perua — completa ela, que chega a ter 90% da equipe masculina na produção das alegorias. A direção de carnaval, no entanto, está longe de ser a única função nas escolas de samba no compasso de um "clube do Bolinha". Carnavalescas e intérpretes ainda são poucas. Presidentas de agremiação, idem — uma delas Guanayra Firmino, na própria Mangueira. Chefas de escultura, em toda a Cidade do Samba, só há três, duas delas, Marina Vergara e Andréa Vieira, na Grande Rio. Num dos barracões mais femininos, a tricolor de Duque de Caxias também aposta em duas estudantes de Belas Artes, Jovanna dos Reis Souza e Sophia Chueke, como empreiteiras de alegorias. Já mestra de bateria na Marquês de Sapucaí nunca houve. Mas, no último mês de junho, um marco aconteceu: foi criada a Batuque das Guerreiras, a primeira bateria inteiramente feminina, regida pela Mestra Vivian Pitty. Elas não são o time oficial da Unidos de Padre Miguel, porém, fazem apresentações pela escola, com talentos que despontam. — Acham que mulher só toca instrumentos como tamborim e chocalho. Escolhi a caixa no alto (segurada acima do ombro). Muitos homens duvidam de mim. E acabam impressionados com minha resistência — diz Raphaele Honorato, de apenas 20 anos, ritmista das Guerreiras. "Mas é tão magrinha e miudinha" era o que Anny Alves ouvia ao debutar como musa. Já Duda Apolinário concretizava seu sonho, ainda num projeto mirim, e lidava com comentários do tipo: "Se minha filha fosse gorda assim, nunca a deixaria ser passista". Com corpos reais, distintos dos padrões estéticos frequentemente impostos às posições que ocupam, as duas tiveram que sambar em cima da ditadura de peitos, bundas e coxas saradas no carnaval. Duda, que teve de mudar três vezes de colégio por causa de bullying, foi recém-aprovada em primeiro lugar numa audição para passista-show do Salgueiro, com direito a aplausos entusiasmados do júri. Este mês, num ensaio da vermelho e branco, um vídeo dela dizendo no pé viralizou na internet. Não demorou para que começassem a chegar mensagens de meninas que a exaltavam como inspiração — um estímulo para quem não cogitou desistir, mas que sofreu por ser atacada com olhares e palavras: — Com 18 anos, lido melhor. Mas, pequena, não era assim. Sempre tinha problemas com as fantasias, que não eram adequadas a meu tamanho. Com sapato, era o mesmo. Calço 42 e desfilei com sandália 38. Agora, no Salgueiro, não sou uma passista plus size. Sou passista. Anny, por sua vez, tinha 47 quilos ao surgir nas quadras. Musa da Porto da Pedra, hoje ela mora na Croácia, onde tem um estúdio de samba: — Nas minhas aulas, repito que samba é para todos. Que ninguém precisa dançar igual a mim. Cada um faz do seu jeito, põe sua imagem e sua identidade ali. Espero que um dia todos aceitem isso, sem padrões preestabelecidos.


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